Viajando na poesia de Cecília Meirelles

Viajando na poesia de Cecília Meirelles


Viajar é um dos melhores prazeres de vida... Faço coro a essa frase e aos que ainda não puderam vivenciar tal experiência, recomendando que a façam urgentemente! Mas, antes da viagem propriamente dita existem os desejos e planos para que a mesma se realize... Nos dias atuais, o apelo visual chama muita atenção, contudo, nada consegue superar o impacto da leitura nossos sonhos e divagações... Ah, como é gostoso imaginar uma cidade, uma rua, uma praça, um museu, um hotel, um restaurante... Como é bom vislumbrar com os olhos da imaginação e depois ter o prazer de ver o local com os próprios olhos!

Seja de forma presencial ou de maneira imaginária conhecer outras culturas e novos lugares é extremamente delicioso! Sendo assim, porque não adentrar na poesia de Cecília Meirelles e viajar num mundo lírico e poético? Por que não deleitarmos nossa alma viajando na beleza da língua portuguesa?

Convido a todos que se permitam mergulhar nessa odisséia literária e apreciar alguns poemas do seu livro Viagem, que consagrou a escritora como grande poetisa da língua portuguesa...
Permitam-se entrar no mundo da poesia e viaje na beleza dos versos da artista.

Jansen Sarmento

MOTIVO


EU CANTO porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gôzo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Si desmorono ou si edifico,
si permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei si fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.


TERRA 

DEUSA dos olhos volúveis
pousada na mão das ondas:
em teu colo de penumbras,
abri meus olhos atónitos.
Surgi do meio dos túmulos,
para aprender o meu nome.

Mamei teus peitos de pedra
constelados de prenúncios.

Enredei-me por florestas,
entre cânticos e musgos.
Soltei meus olhos no eléctrico
mar azul, cheio de músicas.

Desci na sombra das ruas,
como pelas tuas veias:
meu passo — a noite nos muros —
casas fechadas — palmeiras —
cheiro de chácaras húmidas —
sono da existência efêmera.

O vento das praias largas
mergulhou no teu perfume
a cinza das minhas máguas.
E tudo caíu de súbito,
junto com o corpo dos náufragos,
para os invisíveis mundos.

Vi tantos rôstos ocultos
de tantas figuras pálidas!
Por longas noites inúmeras,
em minha assombrada cara
houve grandes rios mudos
como os desenhos dos mapas.

Tinhas os pés sobre flôres,
e as mãos prêsas, de tão puras.
Em vão, suspiros e fomes
cruzavam teus olhos múltiplos,
despedaçando-se anônimos,
diante da tua altitude.

Fui mudando minha angústia
numa fôrça heróica de asa.
Para construir cada músculo,
houve universos de lágrimas.
Devo-te o modêlo justo:
sonho, dor, vitória e graça.

No rio dos teus encantos,
banhei minhas amarguras.
Purifiquei meus enganos,
minhas paixões, minhas dúvidas.
Despi-me do meu desânimo —
fui como ninguém foi nunca.

Deusa dos olhos volúveis,
rôsto de espêlho tão frágil,
coração de tempo fundo,
— por dentro das tuas máscaras,
meus olhos, sérios e lúcidos,
viram a beleza amarga.

E êsse foi o meu estudo
para o ofício de ter alma;
para entender os soluços,
depois que a vida se cala.
— Quando o que era muito é único
e, por ser único, é tácito.

NOITE


HUMIDO gôsto de terra,
cheiro de pedra lavada
— tempo inseguro do tempo! —
sombra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.

Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,
— lábio da voz sem ventura! —
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.

A noite abria a frescura
dos campos todos molhados,
— sòzinha, com o seu perfume! —
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.

Bem que a vida estava quieta.
Mas passava o pensamento...
— de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrêlas e o vento.



LUAR


FACE do muro tão plana,
com o sabugueiro florido.

O luar parece que abana
as ramagens na parede.

A noite tôda é um zumbido
e um florir de vagalumes.

A bôca morre de sêde
junto à frescura dos galhos.

Andam nascendo os perfumes
na sêda crespa dos cravos.

Brota o sono dos canteiros
como o cristal dos orvalhos.



SERENATA


PERMITE que feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.

Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sòzinha.
Há uma doce luz no silêncio
e a dôr é de origem divina.

Permite que volte o meu rôsto
para um céu maior que êste mundo,
e aprenda a ser docil no sonho
como as estrêlas no seu rumo.



ORIGEM


TEMPO gerou meu sonho na mesma roda de alfareiro
que modelou Sirius e a Estrêla Polar.
A luz ainda não nasceu, e a forma ainda não está pronta:
mas a sorte do enigma já se sente respirar.

Não há norte nem sul: e só os ventos sem nome
giram com o nascimento — para o fazerem mais veloz.
E a música geral, que circula nas veias da sombra,
prepara o mistério alado da sua voz.

Meu sonho quer apenas o tamanho da minha alma,
— exato, luminoso e simples como um anel.
De tudo quanto existe, cinge sòmente o que não morre,
porque o céu que o inventou cantava sempre eternidade
rodando a sua argila fiel.


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